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quarta-feira, 1 de junho de 2011

MEMÓRIAS DA MENINA CELTA - PRIMEIRA PARTE

Autoria: Claudete T. da Mata

Minha identidade é algo que me põe a pensar com muita seriedade, sem rodeios, sem fantasias... Falar sobre o que sou me remete a uma busca constante, já que sou um ser sensível às mudanças do dia a dia da vida humana, a qual viaja constantemente, por todos os cantos do mundo, seja por transporte material, cognitivo, emocional, social, financeiro, filosófico, religioso ou científico; uma variável que invade tudo em minha volta.

Por ser uma variável, minha identidade é algo muito complexo, não muito fácil de ser colocada no papel, por isso, acabo sempre omitindo algumas coisas. Isto me reporta a mil buscas: umas agradáveis e outras, de certa forma, traumatizantes. Considero buscas, porque nasci livre, mas fui aprisionada no decorrer de todas as minhas fases de desenvolvimento, através de um simples ato: “Educar”.

Nasci como a maioria dos meus semelhantes (Parto normal). Cheguei ao mundo, chorando forte. Primeiro, me puxaram rapidamente, do ventre materno, em seguida, me deram os primeiros tapas, sem motivo algum; banharam e me enrolaram em panos quentes, até o pescoço; por pouco, não me transformaram em uma múmia mirim. Enrolaram-me tanto, mas tanto, que sinto fobia de roupas apertadas, principalmente no pescoço e nas pernas. Gostaria de torcer as mãos de quem quase me enforcou. Depois, me colocaram numa cama comunitária, com muitas crianças chorando ao mesmo tempo; daí o motivo de mais uma fobia: rejeição a lugares infestados de gente falando ao mesmo tempo (hospitais públicos, festas, eventos, etc.). No berçário, ninguém conseguia dormir, mesmo que desejasse, pois as batidas de portas eram de surtar qualquer um, daí mais uma fobia: pavor de batidas de portas, janelas... Qualquer batida me deixa transtornada.

Chega de vasculhar minhas primeiras memórias. Elas são tantas que daria um livro: “Memórias de Infância”.

Nos primeiros anos de vida, não foi nada fácil para mim. Segundo os relatos de mamãe, fui uma criança  de saúde muito frágil, agitada, ansiosa, curiosa, teimosa, corajosa, ousada, amiga...

Lembrando das coisas que minha mãe lembra-se de mim, me veio à memória, o lugar onde morávamos, lá no Pantanal (Bairro de Florianópolis/SC), próximo da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Eu tinha uns quatro anos de idade, e a casa que ficava no alto de uma colina, rodeada de árvores frutíferas e mata serrada, era chama de “casa mal assombrada”. Eu, por exemplo, costumava brincar no meio da mata, perto de um pé de goiabeira com um de seis galhos próximo do chão, o qual eu fazia de cavalinho, porque ele era comprido, grosso e maleável, feito cavalo de verdade, um animal que sempre tive o desejo de montar.

No fundo da mata, brincando no “galho cavalo”, assim nomeado por mim, muitas vezes vi um senhor de estatura média, queimado do sol, com seu chapéu de palha com aba grande, que o protegia do sol - ele estava sempre cortando um pedaço de fumo que caia sobre uma cuia de cabaça. Ele me olhava sorrindo, com o semblante de alguém muito querido. Este senhor, no nosso primeiro encontro, olhou-me com jeito paternal, apontando às nuvens no céu, e falou: __ Minha menina, assim como aquelas nuvens, o tempo passa, e enquanto viveres não me esquecerás, porque estarei sempre aqui. És forte, corajosa... Tens a vida toda pela frente. Nunca te sintas só...!

Foram tantas coisas que este senhor falara àquela menina, em tenra idade, que a deixou muito intrigada com tudo o que ela ouvira sem saber se falava sobre ele a alguém, ou não. Afinal, qual adulto acreditaria nela sem, provavelmente, lhe dizer: __ Calma, calma! Esse senhor é só um amiguinho imaginário! Assim, a menina foi crescendo sem jamais se esquecer do misterioso senhor. Tanto, que a menina  não se esqueceu de buscá-lo nas suas remotas memórias.

Nesta mesma época, havia outro lugar, na mata da casa mal assombrada, que eu gostava de visitar – era um lugar cheio de arbustos, com um muito especial e misterioso - sobre ele sempre havia uma peça de roupinhas de boneca, que eu sempre pegava e levava pra casa pra vestir as minhas bonecas de pano, feitas confeccionadas por minha avó materna.

Certa vez, ao me aproximar do misterioso arbusto, vi de longe uma moça colocando sobre ele, um vestido de boneca, de chitão vermelho cheio de margaridas. Eu a chamei, mas a mulher saiu correndo e falando: __ Pode levar, eu fiz pra você!

Minha mãe não entendia de onde chegava as tais roupinhas, já que ela conhecia todas as nossas vizinhas, e nenhuma delas se retratou assumindo ser a mulher das roupinhas de bonecas. Só sei que, depois que a mulher misteriosa parou de colocar as roupinhas de bonecas, no arbusto, eu estava beirando os seis anos, quando comecei a fazer minhas próprias roupinhas de bonecas, assim do nada, sem que ninguém me ensinasse. Quem via minha despreza com as agulhas, não acreditava ao me ver costurar o famoso “ponto-atrás”. Se você não sabe que ponto é este, pergunte a alguém que passou por esta experiência. É que naquele tempo (década de 60) muitas costureiras, só costuravam à mão.

Desde criança, que as atividades manuais não são segredos para mim. Portanto, comecei a bordar, a fazer crochê e tricô, sem que ninguém me ensinasse. Confesso que o tricô foi mais difícil, tanto que havia uma vizinha que tricotava todas as tardes, sentada na escada da sua casa, pegando o sol. Eu até pedi a ela que me ensinasse, mas ela não me atendeu, e o jeito foi ir fazendo, fazendo, fazendo... Até acertar. Afinal, morando longe da cidade, não tínhamos como conseguir uma revista de tricô. Eu nem sei se existia!

Havia outro lugar que eu adorava brincar, era o cercado dos caprinos. Certa vez, fugi de casa, pulei a cerca e saí enxotando as cabras, quando fui surpreendida por um bode que veio correndo atrás de mim e me pegou por trás, com uma chifrada no traseiro. Acordei em casa, no colo de meu tio, que sumiu no mundo sem deixar rastros.

Minhas brincadeiras preferidas, além das que já comentei, era brincar de casinha com minhas bonecas de pano e minhas loucinhas de barro, que minha mãe comprava pra mim e minha irmã mais moça, cá entre nós, bem chatinha e muito chorona.

Minha irmã chorava a toa, por isso, outra brincadeira que me agradava, era beliscá-la a noite, na hora de dormir, por baixo das cobertas. Ela botava a boca no trombone, e lá vinha minha mãe com a cinta na mão para me bater. Eu não chorava nem um pouco, e quanto mais minha mãe me batia, mais eu beliscava minha irmã.

Minha mãe tinha o costume de comprar tudo igual para nós duas, eu e minha irmã. Era roupa, boneca... Tudo igual. Até parecíamos gêmeas! Meu irmão, o mais velho, era sortudo porque não tinha nenhum irmão pra competir com ele. Nós três éramos bem amigos, apesar dos beliscões que eu dava em minha irmã. Sempre costumávamos brincar de caçar ratos, antes de dormir. Sabe como fazíamos? Nós colocávamos um pedaço de lingüiça na ratoeira e ficávamos atrás do sofá, bem quietinhos, sem se mexer, até os ratinhos chegarem.

Os ratos ficavam andando em volta da ratoeira, espiando desconfiados, até que... Eu, me compadecendo dos pobrezinhos, empurrava o sofá e os ratos saiam correndo. Era assim que eu os livrava da morte. Aí a coisa pegava - meus irmãos, indignados comigo, avançavam em mim pra valer. Nossa mãe chegava com a famosa cinta, dando cintadas nos três, que iam dormir de lombo quente. Só sei que nunca deixei nenhum rato cair na ratoeira, apesar das cintadas. Sempre gostei de ratos, mas bem longe de mim.

Confesso que fui uma criança travessa e um tanto malvadinha. Uma das minhas malvadezas, era trocar minhas loucinhas quebradas pelas de minha irmã, que ao pegá-las para brincar, ia ao encontro de nossa mãe, aos berros, dizendo: __ Manhêeee...! A Dete quebrou minha loucinha! E lá vinha a cinta no meu lombo. Depois das cintadas, eu sempre voltava a repetir a mesma ação – era só eu quebrar uma das minhas loucinhas, com a minha falta de atenção. Visto que, criança sempre se esquece facilmente das coisas.

Nunca me esqueço do dia que eu cismei de comer jabuticaba e comecei a insistir, até que minha mãe subiu no pé para pegar as mais maduras, que ficavam no alto do pé. Nesse dia, minha mãe colocou um dos pés num galho que se quebrou e ela despencou do pé de jabuticaba, se esborrachando no chão. Não posso negar – fiquei rindo de minha mãe, enquanto ela se contorcia de dores nas costas e nos pés. Isto me trás à lembrança, que dias depois desse acidente, já recuperada, minha mãe estava cortando lenha com umas vizinhas, e quando elas terminaram o serviço, dei o jeito de pegar uma racha de lenha e: de longe, atirei-a nas costas de minha mãe e saí rindo do mal feito. Por isso, minha mãe sempre dizia que eu não era gente. Santo Deus, por que eu agia assim?

Quando me batia sono, eu lutava contra ele porque não suportava dormir. Mas quando dormia, custava a acordar. Muitas vezes acordei com minha mãe borrifando água no meu rosto. Era o jeito mais prático de me acordar. Penso que era por isso que eu gostava tanto de tomar banho de chuva.

Num dia de chuva, após ter tomado banho, saí porta afora para tomar banho de chuva, quando caí na lama, voltando para casa toda suja. Foi então, que a dona Terê veio com sua cinta, e... Imagine, nem preciso nem falar sobre o desfecho desse dia.

Outro acontecimento inesquecível foi o primeiro dia de aula de meu irmão. Quando ele voltou da escola, lá estava eu à sua espera com um guarda-chuva na mão. É que estava chovendo e meu irmão não podia se molhar (ele tinha bronquite). Caminhando nós dois, veio atrás da gente uma vizinha (Maria Tereza) muito folgada, que logo começou a ofender meu irmão. Não contei tempo, fui logo lhe dando guarda-chuvadas nas costas. Foi uma surra daquelas. Quando chegamos a nossa casa, que ficava depois da casa da tal vizinha, lá veio a mãe dela fazendo queixa do ocorrido à minha mãe, que ao ver a menina toda machucada, pegou sabe o que? A cinta! Nesse dia, apanhei tanto... Mas tanto, que minha vontade foi de fugir de casa. Onde já se viu... Defendi meu irmão e apanhei feito boi ladrão.

Além das cintadas e das pauladas, não lembro ter ganhado um beijo ou um abraço de minha mãe, na minha infância. Só de meu pai e daquele senhor que aparecia sentado no galho da goiabeira, lembra?

Dependendo do lugar onde eu estava, após ter feito uma das minhas..., minha mãe pegava um pedaço de sarrafo, que arrancava das cercas, e sentava no meu lombo, sem dó e nem piedade. Nossa Senhora, nem sei como resisti a tamanhas surras. Se existisse “conselhos tutelares, naquele tempo, não sei o que seria de minha mãe. Meu pai jamais me bateu, sempre me deu carinho.

Apesar dos pesares, posso falar que tive uma infância cheia de gostosuras, as quais ficaram gravadas na minha memória. Mas como tudo tem seu começo, meio e fim, as gostosuras foram interrompidas quando meu pai abandonou minha mãe, sem condições de sustentar três filhos pequenos.

Para mim, não foi surpresa saber que meu pai havia nos abandonado, porque eu sempre soube disso. Quantas vezes, na hora dos almoços de domingo, com a família todo reunida, eu olhava para meu pai e chorava. Minha mãe sempre perguntava a mesma coisa: __ Por que essa choradeira, guria? Eu respondia soluçando: __ É que um dia tudo isso vai acabar. O pai não vai mais ta aqui com a gente! Meu pai baixava a cabeça e minha mãe esbravejava contra minha resposta. Teve um dia que até ganhei um tapa na boca, com minha mãe dizendo, indignada: __ Para com isso guria! Por isso, fui a menos prejudicada emocionalmente, com a separação de meus pais.

Foi no dia 13 de junho de 1958 às 22h, numa sexta-feira de lua cheia; "Dia de Santo Antônio", às 22 horas, que nascera uma menina na Ilha de Santa Catarina/BR. Ela chorou forte ao sair do ventre materno, proclamando ao mundo a sua vinda. Uma menina com muitos dons, capaz de encantar o mundo com seu jeito de ser e estar... A menina se tornou Mãe, Esposa, Contadora de Histórias... Uma pessoa especial! Assim nasceu uma Celta no Santuário das Bruxas – Ilha da Magia.

Ainda hoje, alguns dizem que sou Fada, já outros afirmam que sou Bruxa. Será? Tudo o que sei, é que nasci e cresci ouvindo histórias de bruxas, de lobisomens, boitatá e de assombrações, na frente do fogão a lenha, bem no pé do fogo, nas noites de Lua cheia. E a pessoa que mais contou histórias, nessa época, foi a vovó Filomena, uma senhora muito engraçada e batalhadora, que parecia um tanto austera. Ela adorava contar histórias e cantarolar músicas engraçadas, não muito próprias para crianças, do tipo:

“A perereca da Maria é preta.
Caiu no mato e secou...
O Zeca pediu a perereca...
E a Maria arreganhou!”

“Lá atrás daquele morro, passa boi, passa boiada.
Também passa a Maricota, com a saia toda rasgada!”

Muitas vezes, escutando de longe, eu ouvi a vovó cantarolar outras músicas um tanto desbocadas, as quais eu não me atrevo a escrevê-las. Até posso mostrar duas delas, somente assim:

A velha Bela foi pular uma valeta,
Deu um talho na ...
E costurou com linha preta.

O corajoso do Zé,
Subiu no pé da goiabeira
Pra mexer no ninho do anu.
Quando o bicho viu ele,
Deu-lhe uma bicada no ...

Outra brincadeira que vovó gostava, era recitar os famosos Pasquins, uma forma de manifestação da época, que visavam combater a censura imposta pela ditadura militar (Meados dos anos 60-70, com o Presidente da República Costa e Silva, que, ao se irritar com este tipo de manifestação, outorga o AI-5), utilizando grandes pitadas de humor.

Os cidadãos contrários à ditadura elaboravam os pasquins fixando- os nos postes das praças e ruas dos bairros e cidades, para que o povo pudesse ler se divertir com os manuscritos.

Não demorou muito, para os jornais da época, passarem a adotar os pasquins, com a finalidade de usar o humor na exposição das críticas sócio-políticas às classes mais abastadas. Assim, os jornais, de posse desta idéia, passaram a reunir reflexões, mostrar diferentes visões críticas da realidade, juntando denúncias na década de 60 - 70, propondo possíveis soluções à abertura de discussões sobre, sobre bossa nova, divórcio, drogas, teatro, cinema, sexo, pílula anticoncepcional, movimentos feministas... Entre outros assuntos desafiadores da época.

Com o Pasquim, as pessoas ficavam sabendo dos movimentos sociais, podiam fazer suas críticas, se opondo ao sistema. Com isso, o Pasquim teve sua vida podada ao parar nas mãos dos militares, que por sua vez, foram prendendo os primeiros manifestantes brasileiros, oprimindo a sociedade como um todo. A partir de então, as verdades expostas formaram um elo com a polêmica época em que o humor perdurou até o início da década de 90, com suas visões humorísticas mais ousadas, contrárias aos Pasquins do não-conformismo da ditadura.

Se eu fosse escrever um pouco de tudo sobre minha avó Filomena, daria um livro. Graças a ela, hoje posso dizer: __ Que volte o Pasquim! O povo ainda sofre, porque a ditadura ainda permanece sob os vieses da falsa democracia brasileira, que subjuga o povo que pensa ser livre, de fato. Abaixo a falsa liberdade!

Penso que só seremos livres, quando pudermos pagar pelo que temos (nossas casas, carros...) e sermos, de fato, os seus donos, podendo fazer o que bem entendermos deles. Imagine, que nem o muro de nossas casas, não podem ser feitos do tamanho planejado por nós, caso contrário, as autoridades vem e derrubam tudo, sem pedir licença.

Minha avó era uma pessoa humilde, completamente analfabeta, mas que resolvia cálculos matemáticos de cabeça e criticava o sistema de governo da época, como ninguém. Ela era inteligente e criativa, uma verdadeira revolucionária, para uma mulher da sua época.

Mas falando em avó, não poderia deixar de falar sobre minha bisavó paterna, uma índia laçada por meu bisavô, assim que ele aportou no Ribeirão da Ilha de Santa Catarina.

O meu biso Nicolau, foi dono de muitas terras na Ilha, e teve mais de 15 filhos que se espalharam pelo Brasil. Minha mãe conta que ele era tão sovina, que para impedir que as crianças pegassem goiabas para comer às escondidas, ele cerrava galhos das goiabeiras para que, quando alguém subisse neles, caíssem se quebrando no chão. Dizem, ainda, que ele guardava moedas de ouro dentro de potes de barro, enterrados nas terras dele.

Não conheci meu biso, mas meu avô, um de seus filhos mais jovens, foi quem me confirmou esta história. Tanto, que ele guardava alguns pertences que meu biso trouxe da Espanha, com os quais contribuiu na construção e montagem do museu histórico do Ribeirão da Ilha/SC. Meu avô paterno foi o primeiro faroleiro de Santa Catarina. Ele foi um dos construtores do Farol e seu protetor, até morrer bem velhinho, na década de 80.

Meu pai foi o segundo ourives de Santa Catarina. Ele foi um grande artesão do ouro e da prata.

Meus pais costumavam passar os fins de semana, na casa de tia Lulu, quando eu e meus irmãos brincávamos pra valer. A casa era de estuque com o assoalho de chão batido, menos nos quartos, para diminuir a friagem das noites de inverno. Ela também era mal assombrada.

Nas noites de sextas-feiras, de lua cheia, as bruxas costumavam pousar no telhado da casa de estuque, para planejarem as suas malvadezas, antes de partirem para os seus passeios bruxólicos noturnos. Elas conversavam e soltavam frenéticas gargalhadas, se divertindo com a algazarra.

Meu primo Mimi, o mais velho dos doze filhos da tia Lulu, costumava acordar com o cabelo todo enozados. Por isso, meu tio sempre o levava ao barbeiro para cortar o cabelo, o melhor, deixar ele com a cabeça cheia de caminhos de rato. O jeito era desbastar o cabelo, deixando somente o famoso topetinho de milico. Quem mandou ser o preferido das bruxas. Outras vítimas preferidas eram as meninas com suas cabeleiras compridas e soltos; as bruxas faziam a festa – trançavam os seus cabelos, de uma forma, que levavam dias para desmanchar toda aquela bagunça. Por isso, quando chegava a noite, eu tratava de trançar meu cabelo, evitando que as megeras o fizessem. Mas confesso, que de vez enquanto, eu amanhecia com os braços cheios de manchas roxas. Minha tia dizia que era chupada de bruxa. Mesmo assim, eu e meus irmãos gostávamos de passar os fins de semana na casa de estuque, na Ponta de Baixo/SJ/SC.

Outro lugar que me metia medo, era a casa da tia Maricha; ela mesma dizia que meu tio era o lobisomem da praia da Ponta de Baixo. Certa vez, numa sexta-feira de lua cheia, minha tia me convidou para dormir com ela, num quarto separado do de casal, para que eu visse o que costumava acontecer nas noites de lua cheia. E não é que eu vi, com os meus olhos que a terra há de comer, o que aconteceu?

Antes da meia noite, um som fumegante, começou a sair do quarto de casal, seguido de um zunido que circulou pela casa, parecendo nos hipnotizar, colocando-nos numa madorna, daquelas onde podemos ver e ouvir tudo ao nosso redor, sem conseguir fazer nada, nem sair da tal madorna. Seria como se lutássemos para acordar e algo nos conservasse ali sonolentas, sem o poder de reação. Foi horrível aquela sensação, eu diria de impotência diante daquele fenômeno inusitado. E nessa noite eu vi, sem poder reagir, um enorme porco, sair correndo porta afora da casa de minha tia – era um lobisomem!
Até a década de 70, eram frequentes os ataques dos lobisomens, na praia da Ponta de Baixo, onde um pescador precavido cortou a orelha de um bicho que passou feito raio, por ele, o qual, por sua vez... Feito um raio mais rápido que o misterioso animal, passou-lhe o facão na orelha. No dia seguinte, antes de chegar em casa, com o balaio cheio de tainha, o pescador passou no boteco do Seo Maneca pra tomar a pinga matinal, viu o falecido Juca Mexilhão, com a orelha esquerda enfaixada, toda suja de sangue. E quando ele viu o pescador, saiu de fininho, evitando qualquer comentário.

Juca Mexilhão era um sujeito muito estranho. Nunca falava de onde veio, que idade tinha, quem eram seus pais e irmãos, muito menos suas irmãs... Só se sabe que ele chegou ao bairro, de madrugada, numa noite escura, com a mudança numa carroça que ele usava para pegar o trato das vacas. Ele vendia leite na redondeza e catava berbigão pra vender e comer. Era um solteirão muito trabalhador, porém, solitário, de pouca conversa, misterioso... Que despertava a curiosidade da vizinhança desconfiada com o movimento em sua casa, nas noites de lua cheia. Mas depois do ocorrido, nunca mais se ouviu e nem se viu mais nada de estranho na casa de Juca Mexilhão, que, assim como chegou ao bairro, saiu dele sem se despedir de ninguém. Depois disso, jamais se ouviu falar de outros lobisomens na praia da Ponta de Baixo.

Envolvida numa família cheia de histórias, não poderia ser diferente. Mesmo que eu me esforce, sou o que sou!


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